Não falta amor, mas a convivência é impossível

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Você é apaixonado por seu parceiro. Combinam em muitas coisas, mas quando o assunto é a convivência do dia-a-dia, vocês parecem falar línguas diferentes. Ele tem uma compreensão de mundo diferente da sua e age como se não se importasse com seus desejos, pontos de vista ou sentimentos. O sentimento que os une é forte e você não gostaria de simplesmente terminar, mas sente-se sugado e impotente para lidar com tantas diferenças, frustrações e dificuldade de comunicação. De momentos de carinho e paixão, o relacionamento passou a um sem-fim de discussões, mágoas e silêncios ressentidos. 

O processo de apaixonamento envolve aumentar nossa lente para as qualidades do ser amado e desviar o olhar para as suas limitações. Ressaltar semelhanças e minimizar desencaixes. “O amor e o tempo superam tudo", não é mesmo? Não, não é. Com os primeiros sinais de desarmonia entre os parceiros é esperada a busca pelo diálogo, pelas negociações e pelas mútuas concessões, mas se este processo não ocorre como o esperado, o sentimento pode ser o de que o paraíso, de uma hora para outra, o expulsou sem aviso prévio. O outro “não entende” o que, pra você, é óbvio. E é comum começarem aí o uso de mecanismos desadaptativos para tentar reestabelecer o que foi perdido. De repente, é como se todo aquele amor não servisse para nada, porque você e seu parceiro se vêem numa luta diária para tentar fazer o outro entender seus pontos de vista e vocês simplesmente terem paz. O mesmo amor que abastecia seu coração agora parece ter jogado você em uma centrífuga, onde você se sente sugado e prensado boa parte do tempo. O tempo, este mesmo que lhe disseram que curaria tudo, trouxe para habitar em seu peito uma profunda tristeza e um sentimento de solidão que parecem decididos a não irem embora.

Pode parecer estranho, mas raramente as pessoas conversam sobre suas crenças. Sim, sobre aquilo que faz você ser você. Os moldes e os acordos entre um casal costumam ser tácitos- não são anunciados, nem contratados formalmente. Ajustes e combinações são feitos o tempo todo, mesmo que não se pare pra pensar: “olha só, agora acordamos tal coisa". O que pouca gente conta é que os casais que dão certo conversam muito, muito mesmo. Alinham expectativas, reveem posicionamentos e entendem que não há uma verdade única: há a verdade de um, a verdade de outro e um grande desejo de se chegar a um denominador comum.

Sim, todo mundo sabe: o amor perfeito, aquele dos livros e filmes, onde tudo se resolve num passe de mágica por obra e graça do amor poderoso que une o casal, não passa disso: de um mito. Você jura que sabe disso, mas será que age como quem realmente sabe?

Pode ser um bom começo tentar entender o que nossos avós faziam em um relacionamento: primeiro o namoro, depois o noivado e depois o casamento. E antes que você pense que sou de outro século e que isto não faz sentido nos dias de hoje, explico: nos dias de hoje, são cada vez mais frequentes os relacionamentos-relâmpago, em que pessoas se conhecem e já vão morar juntas. Não há tempo para que o casal realmente conviva e perceba o quanto realmente combinam e o quanto uma vida a dois faz sentido. Uma paixão avassaladora ou a necessidade de dividir despesas costumam estar no topo dos motivos por uniões abruptas. São comuns, também, os casos de pessoas que moram longe e começam seu relacionamento passando apenas eventuais finais de semana juntos- o que eu costumo chamar de relacionamentos-visita. Nestes, pode não haver espaço ou desejo para que cada um se mostre realmente pois o pouco tempo juntos faz com que nenhum dos dois queira sair do prazeroso clima de lua-de-mel. Quando a convivência fica mais frequente, é comum as diferenças que foram suprimidas aparecerem com força total.

Dê você o nome que quiser dar, “namoro” e “noivado” eram períodos que tratavam exatamente do tempo necessário para que um casal se conhecesse, aprofundasse sua convivência e percebesse se realmente são capazes de resolver suas diferenças e estabelecer projetos de vida em comum. Informações preciosas podem ser obtidas quando vocês ainda estão se conhecendo: de onde vem seu parceiro, em que cultura ele está inserido, seus valores de família, o que ele considera papel de cada um dentro de um casal. O que cada um de vocês considera que pode ser negociado, o que não. Como é seu ritmo, como é o dele; suas personalidades, seus anseios, seus temores. Se ele prefere o silêncio ou a agitação, se gosta de resolver as coisas na hora ou se precisa de um tempo para processar suas emoções e assim por diante. Com o tempo, ao surgirem projetos de uma vida a dois, é bem-vindo outro nível de profundidade nas conversas: ter filhos ou não tê-los; morar na cidade, na praia ou no campo; sonhos de estudar, trabalhar ou viver no exterior; necessidade de receber ou fornecer ajuda financeira de familiares…Existem diferenças que podem ser suplantadas pelo diálogo e outras que podem ser intransponíveis- ter um filho, dois ou três, por exemplo, é supostamente mais fácil de negociar do que um querer filhos e o outro não. Além de tudo, somos seres mutantes: não é porque algo foi combinado que será para sempre. Estamos o tempo todo repensando nossas escolhas e não há nada de errado nisso. E aí vamos nós: mais diálogo, mais combinações, mais negociações. A cada vez que uma mudança é assimilada pelo casal é como se houvesse um novo contrato de convivência- ninguém anuncia, mas ele está lá.

Cá entre nós, como você conversa com seu parceiro? Você abre espaço real para que ele se coloque e tenta acolher as diferenças? Você tenta genuinamente entendê-lo ou você o ouve esperando ansiosamente ele terminar de falar para voltar a explicar sobre o quanto VOCÊ está certo?

Como em qualquer negociação, primeiro há que se saber o que precisa ser negociado e o que deve ser deixado de lado. Há uma expressão em inglês pra isso: “Let’s agree to disagree”-  vamos concordar em discordar. Em alguns casos, quando não afeta o cerne da relação e envolve preferências pessoais, ambos podem - e devem - manter sua individualidade e seu próprio jeito de levar a vida. O gosto por música, livros e filmes são bons exemplos. Time de futebol e modalidade de atividade física também. Religião e política deveriam entrar aqui, mas podem ser mais complicados se um ou ambos forem muito radicais. Costuma ser mais fácil quando o tema é menos próximo da relação em si.

Seja sincero: você dá espaço e autonomia para que seu amor seja a pessoa que ele pode e deseja ser, ou você luta para transformá-lo no "amor que você sempre sonhou” ou em alguém o mais parecido possível com você?

Dificuldades de comunicação costumam minar os relacionamentos, mas imaginar que o outro pensa e sente como nós ou querer transformá-lo em alguém que ele não é, também. Algumas ideias? Tentar levar a conversa para além do conflito do momento. Quase começar do zero. Por exemplo: “Acho que precisamos nos conhecer melhor e entendermos o que o outro pensa sobre o que seja ser um casal.” E aí, tentar entender seu parceiro através de algumas perguntas, como “você acha que dentro de um casal pode-se sair sozinho com os amigos ou amigas? Se sim, tem lugares em que você considera que não devemos ir sem o outro?” Pode parecer bobagem e que estas perguntas são quase infantis, mas acredite: o óbvio nunca é óbvio, sobretudo em se tratando de encaixes de novos casais. Obviamente, casos de mentiras ou descumprimentos do que foi combinado não podem ser tratados como questões genéricas. Há que se parar e rever o quanto aquela combinação é possível de ser mantida ou o quanto ela pode estar exigindo demais de um dos dois. Outra coisa: há um sistema de dois pesos e duas medidas na combinação? Algo meio inconfessável, como “combinei porque quero que você faça, mas me sinto no direito de não cumprir porque exige demais de mim”? E aqui trato da presença de uma hierarquia perversa dentro do casal, onde um acha que tem mais direitos do que o outro. Um tema e tanto para ser trabalhado.

Apesar de todas as tentativas de diálogo e de ajustes, muitas vezes as diferenças são de tal magnitude e a comunicação se encontra de tal forma dominada pelo desejo de um impor-se ao outro que o diálogo não basta. A necessidade de ajuda profissional pode ser imperiosa.  E boa parte das vezes, as diferenças são mesmo irreconciliáveis e a separação, mesmo ainda amando o outro, pode aparecer como única opção. 

Não, amor não basta. Amor não se “autocura” sozinho, pelo menos não por muito tempo. O amor tem seus altos e baixos, não é perfeito, tem que ser alimentado e reforçado um pouquinho a cada dia, mas se não enxergarmos que há um trabalho a ser feito a dois para dar solidez ao relacionamento, ele pode ir definhando até morrer. O amor, como cada um de nós, necessita de oxigênio para sobreviver e seu oxigênio é obtido através de uma convivência pautada por harmonia e por esforços para obtê-la (e reobtê-la, quando for perdida). O amor vive de compreensão, respeito, concessões e carinho. Para o amor sobreviver e se fortalecer, a convivência deve ser algo tão prazeroso quanto o sentimento que vai no peito e o desejo que percorre o corpo. Se, a despeito de todos os esforços a realidade que o dia-a-dia impõe é um somatório de frustrações e sofrimento, a companhia do outro pode virar nossa kriptonita. E por mais que acreditemos que amar seja um super poder, precisamos ficar longe dela. 

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